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Edição 588

Para que servem as águas do rio?

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As águas do rio Ave levam, por estes dias, um caudal historicamente baixo que proporcionam o reaparecimento de um pequeno areeiro na zona da Azenha da Barca, em Finzes. As minhas memórias levam-me à década de 80 do século passado, onde o espaço era visitado por inúmeros veraneantes, numa época em que as praias de Vila do Conde ficavam bem mais “longe” e muitos trofenses aproveitavam as margens ribeirinhas para disfrutar da natureza!
Nesse período, dezenas de pessoas, em ocasiões centenas, estendiam as suas mantas e toalhas acompanhadas de uma pequena lancheira. Vendedores de tremoços ou bebidas frescas apareciam no local, agitando um pouco mais o ambiente.
O entretenimento fazia-se com o rolar de umas pedras sobre as águas do rio, numa espécie de jogo com regras improvisadas, que acalentava o convívio e era o brinquedo que estava mais à mão. Um pouco mais atrás, na zona onde a areia se misturava com a terra, jogava-se o tradicional jogo das malhas.
Uma ou outra senhora aproveitava ainda o espaço para lavar a roupa e, naquelas mesmas areias, estender a roupa a corar. Cestos de palha eram construídos no local por um ou outro artesão que aproveitava o momento para acalentar negócio.
Ao longe, o caneiro encarregava-se de produzir a música ambiente num som contínuo e constante, acompanhado pelo cantar dos pássaros que, em conjunto, formavam uma orquestra inconfundível.
Um ou outro arriscava-se a passar o caneiro, com o auxílio de um pau, num ato de coragem, que era acompanhado pelo olhar atento de todos.
Enquanto os mais velhos com canas de pesca tentavam tirar proveito do rio para o seu jantar, os mais novos munidos de sacos plástico ou uma pequena rede com facilidade faziam-se pescadores! Eram cardumes a passar nas margens do rio e, de tantos, alguns acabavam por ficar presos na armadilha montada.
Por um acaso, cruzei-me nessa mesma tarde domingueira com um rapaz, provavelmente trinta anos mais novo do que eu, mas com a mesma idade que eu tinha naquele tempo, a rondar os dez, doze anos! Boné na cabeça, mochila de pescador e um sorriso nos lábios, satisfeito com o que tinha “tirado” ao rio – um pequeno peixe! Perante a minha curiosidade apressou-se a mostrar o seu pescado acedendo a fotografar aquele momento para a posteridade, num gesto em todo igual à criança que eu fui, embora com menor sorte mas, em todo o caso, com o mérito de acreditar que o rio ainda tem algo para dar!
Vivi ainda os anos 90 com a melhoria generalizada das redes de comunicação e transportes, na Trofa e no país, que possibilitaram outras paragens, o que aliada à poluição entretanto lançada nas águas do rio, por industriais e agricultores, convidavam a um desinteresse generalizado – o matagal intensificava-se e nas margens do Ave, o acesso tornava-se cada vez mais difícil.
Ironicamente, nestes mesmos anos muito mais gente passou a habitar o local, graças à construção de uma grande urbanização: a urbanização da Barca, não tendo a maior parte dos seus novos residentes a felicidade de presenciar muito do que aqui relato.
O rio que tinha sido sempre contemplado pelos locais e estava agora abandonado, distante de toda a vida que tinha gerado no passado, ficando como vestígios as várias azenhas abandonadas que permaneceram nas suas margens, num processo de degradação sem fim e que enterram parte da nossa identidade.
Esta dádiva da natureza ficou parada no tempo e a harmonia entre trofenses e o rio Ave eram apenas memórias até que, em 2006, começam os rumores de que a área ribeirinha seria requalificada numa extensão de cerca de 4 km – o projeto, “Parque das Azenhas”. O objetivo, que não era inovador, seria construir nas suas margens uma espécie de um passadiço que acompanhasse o curso da água e permitisse a contemplação da sua fauna e flora peculiares.
Deu-se então um processo de expropriação de terrenos que possibilitou o nascimento da obra orçada em quase três milhões de euros que, inaugurada ainda inacabada a 15 de setembro de 2013, em véspera de um ato eleitoral, sendo então entregue à população que dela apenas pôde disfrutar durante poucas semanas…!
Com um novo executivo, três anos passados e com iguais períodos que poderiam ter sido áureos no usufruto do espaço – os dos meses de verão – a relação entre as pessoas e as águas do rio continuam turvas, muito turvas: ora varre, ora deixa sujar, num para/arranca sem fim, com o espaço a funcionar como uma espécie de uma embaixada que pertence a um construtor e que, por isso, deixou de ser território nosso!
Estranhamente, o projeto não sofreu alterações, continua o mesmo! Com a mesma forma inicial, beneficiando apenas das águas calmas que o rio Ave apresenta atualmente, estando o espaço com o aspeto “varrido” para todos aqueles que quiserem ver o andamento das obras e o imenso potencial de que não podemos desfrutar…

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