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Escrita com Norte: Pessoa de poucas palavras

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Sidónio, mal acabado de sair do ventre da mãe, depois de esta soltar o último palavrão do parto, não emitiu um pio. Depois da algazarra causada pelos berros da mãe e dos gritos aflitos dos familiares na sala de espera, fez-se silêncio. O médico, que tinha uma futebolada combinada com os amigos, exclama:

– Ui, o puto não chorou!

– Acha melhor voltar a pô-lo lá dentro, Sr. Doutor, e repetimos o parto? – pergunta a recente mãe.
Caso o médico acedesse ao pedido de Emília, este seria o primeiro caso no mundo em que uma recente mãe deixaria de o ser, para voltar a ser novamente mãe do mesmo filho.

– É melhor não. – responde o médico, que, caso aceitasse a sugestão, nunca chegaria a horas à futebolada.
Deu-lhe uma palmada no rabo e Sidónio desata a berrar, algo que viria ser mais normal na sua vida do que falar!
As brincadeiras preferidas da canalha, tanto na rua como na escola, eram a bola, em que Sidónio ao escolher a equipa apontava para os coleguinhas, e os índios e cowboys, em que ele preferia o papel de índio, soltando berros e gritos de guerra, não deixando dúvidas para a sua mãe de que não tinha problemas de vocalização.
(Quando alertada, certa vez, de que nunca tinham ouvido o filho falar, respondeu, “Se berra e grita, também fala)
A professora de Sidónio, que ensinava a tabuada, as províncias e os rios de Portugal como ninguém, depois de ensinar as contas de “mais” e de “menos” e as de “vezes” e de “dividir”, decidida a ouvir a voz de Sidónio, pergunta:

– Menino, 437 a dividir por 12?
Num silêncio tenso, toda a turma olhava para Sidónio, alguns a babar-se, na esperança de o ouvir!

– 36,41. – respondeu
Achando-se numa outra dimensão por ouvir a voz do seu aluno e com a resposta certa dada, para se certificar que ainda estava neste mundo, a professora pergunta ao Quim:

– 2 mais 2?

– 5. – respondeu o Quim.
A professora respirou de alívio e mandou a turma mais cedo para casa.
Nunca mais se ouviu o Sidónio a falar. Alguns dizem que foi do choque de ter acertado uma conta tão difícil na terceira classe.
No ano seguinte, depois de reprovar na quarta, Emília fala com o Sr. Teles para o filho aprender com ele o ofício de alfaiate, convencendo-o de que Sidónio tem a primária practicamente feita, faltando-lhe uma competenciazita, coisa pouca, saber o nome dos Governadores Civis do Porto e Viana do Castelo.
Sidónio foi aceite e ao fim de algum tempo de aprendizagem o Sr. Teles pergunta-lhe:

– Rapaz, estás preparado?
Não respondeu, ficando a olhar para o patrão.
Como o Sr. Teles sempre fez uso da sabedoria popular para guiar a sua vida, pensou, “Quem cala consente”.
Cliente habitual da alfaiataria, Conceição, da idade de Sidónio, ia com uma frequência quase semanal para alargar os fatos do pai, que insistia em emagrecer, não parando de comer, dizendo, “Os fatos ainda me servem.”.
Com o passar do tempo, uma paixão foi crescendo entre os dois, assim pensava Conceição, baseada em nada e na cegueira do seu amor. Um dia, decidida, vai à alfaiataria e diz-lhe:

– Não trago nenhum fato para alargar.
Sidónio encolhe os ombros em sinal de indiferença e Conceição prossegue:

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– Queres namorar comigo?
O rapaz volta a encolher os ombros.
Conceição, radiante da vida, abraça o seu amado e feliz sai da loja. Da porta informa-o:

– Vou dizer aos meus pais que vamos casar!
Anos mais tarde, no altar, em frente ao Padre Manuel, Conceição diz “Sim”.

– E tu meu filho, aceitas casar com a Conceição?
Sidónio mantém-se calado. Como a cerimónia já ia muito demorada e os convidados estavam cheios de fome, especialmente o pai da noiva, Vasques, contemporâneo do noivo e testemunha ocular do que se passou anos antes na terceira classe e um dos raros conhecedores da voz de Sidónio, imita-o, dizendo entre dentes, “Sim”.
Conceição foi muito feliz, quanto a Sidónio não se sabe. Faleceu numa sexta-feira à noite, porque não gostava de saltar refeições, tomou o pequeno-almoço, almoçou, lanchou, jantou e tomou café na sua poltrona. A mulher, na sua felicidade conjugal, na segunda-feira seguinte, quando o chama para ir trabalhar, perante a falta de resposta telefonou ao Sr. Teles a perguntar:

– O Sidónio está de férias?
Perante a resposta negativa, Conceição grita, “O meu amor morreu!”
Ainda hoje, quando vão mudar as flores da campa de Sidónio, pessoa de poucas palavras, ouvem, vindo de dentro, “Tirem-me daqui.”

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