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Edição 662

“Se tivéssemos atuado, ia ser um desastre”

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Américo Azevedo esteve dois anos na Guiné-Bissau, destacado na Base Aérea n.º 12. Da experiência do Ultramar, o trofense recorda momentos bons e alguns acontecimentos insólitos. Para sempre ficou a amizade com os colegas de posto, com quem ainda mantém contacto.

A cautela foi a melhor amiga de Américo Azevedo durante o Ultramar. Do turno de 1972/74, o trofense tinha 22 anos quando foi para a Guiné, cumprir serviço na Base Aérea n.º 12, em Bissau. Durante a apresentação, perguntaram-lhe se sabia assentar tijolos. Disse que não. A questão foi feita a todos os soldados que, mediante as respostas, foram separados em dois grupos. Américo foi destacado para a base aérea… os outros, conta, “foram para o mato construir tabancas, sempre debaixo de fogo”.
É por isso que Américo acaba por desvalorizar a sua passagem pelo Ultramar, quando a compara com colegas que estiveram no epicentro do conflito. Como estava na área de proteção à aviação, ou seja, só tinha de atuar se fosse necessário abater aviões inimigos, o trofense acabou por ter uma estadia tranquila, sem grandes sobressaltos.
Américo Azevedo assentou praça em Espinho, Paramos, e de lá viajou para Queluz, para o Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa (RAAF), onde tirou a especialidade de manobrar armas vocacionadas para abater aviões. Em 1972 embarcou para a Guiné e na base aérea onde ficou destacado acabou por reencontrar colegas de tropa. “O meu capitão e os meus instrutores no RAAF estavam lá”, contou.
Depois de lhe ser apresentada a “tabanca” onde iria viver, Américo Azevedo iniciou uma rotina que, poucas vezes, teve percalços. Mas há um acontecimento, que podia ter terminado em tragédia, que Américo não esquece. “Quando chegava a noite, perguntávamos sempre à torre de controlo qual era o tráfego aéreo e de lá diziam-nos a hora em que deixava de haver, para que se houvesse alguma movimentação suspeita, prepararmos as máquinas para um possível abate. Numa ocasião, já tínhamos sido informados de que não havia mais tráfego quando nos chegou uma ordem que havia um avião inimigo nas proximidades. Já tínhamos a artilharia preparada quando, de repente, as luzes da base acenderam-se na pista. Passado pouco tempo um furriel ordenou-nos para não abatermos o avião, porque este vinha descarregar munições e bombas para o nosso exército. Se tivéssemos atuado, ia ser um desastre. A Guiné ia pelos ares”, relatou.
Este “erro humano” ficou-lhe gravado na memória, assim como outro cometido por um soldado que, com uns copos a mais, decidiu dar um tiro para o ar e alertar um colega que, pensando tratar-se da ofensiva de um inimigo, respondeu com mais tiros. Resultado: uma das armas da artilharia antiaérea disparou “balas traçantes” em direção ao alegado inimigo e provocou incêndios nalgumas “tabancas” civis. “Aquele episódio podia ter matado muita gente. Felizmente, não houve vítimas, só danos materiais”, recordou.
Excetuando casos como estes, que se contam pelos dedos de uma mão, Américo Azevedo afirma que passou “17 meses e dez dias calmos”, apenas atormentados pelas imagens de militares e civis “feridos e mortos” que chegavam nos helicópteros e da pobreza visível da população local, cujas crianças passavam largos períodos “nas lixeiras” para resgatar restos de bebida e comida. “Descalços num chão cheio de vidros partidos, pegavam numa lata cheia de lixo, sacudiam e bebiam os restinhos”, relatou. Muitas vezes, Américo almoçava e deixava alguma da refeição para depois distribuir pela comunidade, por quem se afeiçoou. Carlinhos e Toninho eram duas crianças com quem o trofense brincava e ainda hoje os recorda com carinho.

As tainas e os porquinhos debaixo da cama

Do outro lado, Américo recorda também muitos bons momentos, principalmente na companhia dos colegas de turno do “posto 5”. Nos dias de folga, o grupo pedia dispensa e ia passear por Bissau, para beber uma cerveja e comer camarão junto à marinha. Noutras ocasiões, preparavam “tainas”, ora com peixe que pescavam ora com comida que vinha de Portugal. Numa delas, Américo excedeu-se na quantidade de cerveja e whisky. “Apanhei uma rosca daquelas, comecei a chorar a dizer que queria ir para a beira da minha mulher, e era solteiro. No dia seguinte, não me lembrava de nada do que tinha acontecido e os meus colegas lá me contaram que eu cheguei a um ponto que parecia uma criança a chorar”, contou, entre risos.
Mas também houve um momento em que só Américo estava sóbrio e, de folga, teve de tomar lugar no posto para encobrir todos os outros colegas que estavam bêbados. “Por qualquer razão eu tinha estado no turno contrário do deles. Quando cheguei ao posto estavam todos como um cacho. Se por acaso um sargento passasse lá, ia ser um problema enorme, porque para todos os efeitos o posto estava ao abandono. Acabei por ficar lá até ao fim do turno porque havia rondas regulares e eu tinha de estar à porta para dizer ao furriel que estava tudo em ordem”, recordou. Dessa situação, acabou por ser recompensado com a folga do dia seguinte, dada pelos colegas.
Outra das histórias que Américo lembra com um sorriso na cara aconteceu na tabanca da mulher que lhe lavava a roupa, de seu nome Quinta. “Era noite e estávamos a conversar, mas de repente ouvi um barulho que me desassossegou. Logo alertei os meus colegas que estavam do lado de fora e fiz uma ronda pela tabanca. Quando cheguei à cama da lavadeira, por baixo estavam três porquinhos a dormir”, contou.
Da experiência do Ultramar, além de se orgulhar de ter sido “sempre bem aceite” pela comunidade local, Américo mantém a relação de amizade com os colegas que ainda estão vivos: “De vez em quando ligamos uns para os outros. E depois ainda nos juntamos nos encontros. É tudo gente maravilhosa”.

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