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Edição 425

Os imprescindíveis

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atanagildolobo

« Há homens que lutam um dia e são bons / Há outros que lutam um ano e são muito bons / Há outros que lutam muitos anos e são melhores / E há ainda aqueles que lutam toda a vida / E esses são os imprescindíveis…»

Bertolt Brecht

 Para mim és imprescindível, porque lutaste toda a vida e porque és insubstituível…e também porque nunca me faltaste. De facto, sempre que necessitei de ti respondeste: presente. Muitas vezes antecipavas-te e oferecias-te antes da ajuda solicitada. E eras assim, naturalmente, com as pessoas: prestável, amigo, brincalhão, responsável, atento. Eras também um livro de histórias: tristes, alegres, divertidas… Quantas vezes fomos por esse país, às vezes os dois, outras vezes com outros amigos e tu, abrias o livro e desfilavas durante horas a fio os teus protagonistas, as aventuras e desventuras, as alegrias, os encontros e desencontros de uma vida cheia e repleta de vida e de vidas. Com essas histórias demos, em anos e anos, a volta ao país, deliciamo-nos com gastronomia esplêndida, andarilhamos trilhos, rios e montanhas do nosso Portugal. Tinhas a quarta classe, mas eras um dos homens mais sábios que conheci até hoje. Falhaste em alguma coisa ou com alguém…? É natural…quem não falha. Mas conhecias uma ciência rara, tão rara, como só poucos homens a conhecem: reconhecer o erro e pedir desculpa.

«Olá amigos». Aquela voz, aquela entoação, eram mecanicamente reconhecidas. Chegara o Arnaldo, Arnaldo Ferreira. Foi presidente da comissão administrativa da nossa freguesia de Guidões a seguir ao 25 de Abril de 1974. Durante cerca de dois anos, à frente desta comissão administrativa, foram geridos os destinos de Guidões e criadas as condições para que, pela primeira vez, houvesse eleições livres e democráticas na nossa terra. A comissão administrativa funcionava em harmonia com as comissões de moradores e a sua comissão coordenadora, bem acompanhadas pelo dinamismo então existente das populações. Embora com poucos fundos, conseguiu-se pavimentar as ligações principais a Alvarelhos, Muro e à Estrada Nacional Vila do Conde-Trofa, trazendo novos transportes para Guidões. Canalizaram-se águas de forma a não se alagarem as vias públicas no Outeiro, Oliveiras e Cerro. Procedeu-se à electrificação do lugar de Vilar, criaram-se as condições para o alargamento do cemitério, repararam-se alguns caminhos, pondo-os transitáveis, recolocaram-se janelas e vidros na Escola Ferreira Lopes, executou-se o recenseamento de todos os eleitores e organizaram-se eventos de carácter desportivo, recreativo e cultural.

Arnaldo Ferreira foi, coerente e consequentemente, comunista. Entrou em todas as frentes eleitorais autárquicas em Guidões como candidato e activista nas listas da FEPU, da APU e da CDU, sem nunca desanimar ou esmorecer. Foi sempre um exemplo de luta, de trabalho, de combate. A sua formação e actuação política e cultural vêm de longe. Do final dos anos 50, quando encarnou, como actor amador o papel de «Parvo» no « Auto da Barca do Inferno» de Gil Vicente até há bem pouco tempo. Já muito doente e fragilizado pela doença, foi com ele e graças a ele, que recuperamos o «hino de Guidões», composto nesses anos de 1950, para esta guerra que ainda combatemos da preservação da nossa freguesia – Guidões – que muitos, ou quase todos, amam, mas ninguém a ama mais do que o Arnaldo. Também há bem pouco tempo, percorreu a pé toda a freguesia, foi aos locais mais recônditos, a solicitar somente uma assinatura, uma consciência, mais uma voz para a luta por Guidões, pela nossa freguesia, contra os abutres e hienas que a matam, apenas por matar.

No dia 29 de Maio de 2004 o Arnaldo levou a efeito uma tarefa política gigantesca, talvez a mais difícil de toda a sua vida. Uma determinada saída estava marcada pela CDU para esse dia, em que de Guidões saía um autocarro com cinquenta camaradas e amigos. Nesse mesmo dia no cemitério do Prado de Repouso no Porto foi incinerado um dos maiores amigos do Arnaldo, senão o maior, Augusto Lobo, meu pai. Mais nenhum dos camaradas que ia no autocarro sabia da morte de meu pai, por vontade última e expressa de meu pai que não queria qualquer divulgação. O Arnaldo passou toda a madrugada do dia 28 de Maio em que meu pai morreu comigo e com a minha família, ajudou-me em tudo o que pode ajudar e herculeamente dirigiu a iniciativa de 29 de Maio sem comprometer a vontade de meu pai. Inicialmente teve dúvidas, mas foi a certeza de que a melhor homenagem que lhe poderia prestar seria cumprir a tarefa e levar a bom porto a iniciativa, que o convenceu. E assim foi.

Hoje, 28 de Maio de 2013, o meu grande amigo e camarada Arnaldo Ferreira vai a sepultar, hoje em que passam nove anos sobre a morte de meu pai. Sinto-me triste, algo revoltado…mas determino-me e reafirmo-me prosseguindo a mesma luta contra a exploração e por uma sociedade socialista que ambos abraçaram, no PCP e com o PCP, recordando os seus exemplos de homens dignos e lutadores.

Uma última palavra para a tua família a quem expresso publicamente o meu mais profundo pesar. Porque uma família reflecte bem aquilo que um homem é. Dos teus irmãos aos teus netos nota-se o mesmo carinho e estima. Aos teus genros ganhaste, e nem sempre é fácil, consideração, respeito, amizade, eu diria mesmo, uma espécie de amor quase filial. Para a Lucília e tuas filhas não haverá palavras para descrever o que sentem…pois foi tão grande o amor e o carinho que sempre te dedicaram. Nós, os amigos, continuaremos a falar de ti e a lembrar com alegria a tua vida, o teu fácil relacionamento, as tuas e as nossas histórias, o teu bom humor, o teu exemplo…e os motivos pelos quais te fazem pertencer a essa classe de que fala Bertolt Brecht: «… os imprescindíveis».

 

Guidões, 28 de Maio de 2013.

 

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Atanagildo Lobo

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