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Edição 615

O inorexável sentido da vida

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Passaram apenas uns míseros três meses desde que regressaste de Reims, onde a trabalhar estavas – um destes novos emigrantes vitimas da Troika e de P.Coelho e Portas – e definhando, dia após dia, implacavelmente foste levado por essa doença maldita para a qual ainda não há cura, de forma a que se possa dizer: finalmente, eis aqui a cura. Tu, que eu julgava indestrutível, porque tu mesmo assim te dizias e eu quase acreditava, não eras um poço de virtudes, nem um maço de defeitos. Pura e simplesmente, eras um ser humano. Um ser humano como muitos outros. Quis a razão da vida, as coincidências da existência, que fossemos amigos, companheiros, conterrâneos, “compagnons de route”. Para o nosso meio tiveste a coragem, até na morte, que muitos não tiveram. Preferiste a cremação e não quiseste o teu corpo morto exibido. Recusaste o espectáculo. Quem bem te conheceu sabia que não quererias na tua cerimónia fúnebre algumas coisas. Eras um homem simples e recatado, gostarias de simplicidade e discrição no funeral. Quem te conhecia saberia que preferirias que se cantasse o “hino de Guidões” aos “terços”, que as pessoas, e os Guidoenses em particular, fossem mais amigos e amassem esta terra como tu amavas, em vez de te levarem tantas flores. A falar disso, sabes que estava a escrever os textos que acompanhavam os pequenos ramos de cravos vermelhos – tenho a certeza que foram os que mais estimaste, por que eram de cravos vermelhos – que, como sabes, costumamos ofertar em nome da CDU aos familiares dos nossos amigos e camaradas que morrem, e ouvia a tua a voz reprovativa e quase sarcástica: “Nem é bom pensar gastar dinheiro nisso, bebam mas é um copo”. Sim, aquela tua forma de “ser sempre do contra”, de resmungares entre dentes, contradizia a forma abnegada e combativa com que te entregavas à luta, ao trabalho, ao combate.
Na luta contra a extinção da nossa freguesia foste um dos primeiros. O primeiro a pegar no abaixo-assinado e calcorrear a freguesia. Lá apareceste na foto do “Noticias da Trofa” de 29.11.2011 a responder à jornalista que te trocou o primeiro nome de António para Pedro: “ «Se nós nascemos em Guidões, para que é que vamos agora juntar-nos a outras freguesias?», questionava Pedro Pereira, enquanto segurava os vários papéis já assinados. «Isso não vai trazer benefício nenhum e eles (Governo) estão a inventar que vão ter menos despesas com a fusão das freguesia», continuava indignado e cheio de vontade de continuar a palmilhar a freguesia a pé em busca de mais apoiantes”. Também naquela noite de 9 de fevereiro de 2013 na queima do entrudo chamado “Relvas”, contribuíste para uma das mais belas páginas da história da resistência de Guidões a essa imposição que passou a impedir os Guidoenses de decidir sobre a sua própria terra. Foram tuas as palavras da abertura: “Damos abertura ao julgamento / Deste carrasco da freguesia; / Haverá acusação / E haverá defesa / No processo que se inicia.”
Permaneceste comigo, praticamente em todas as lutas em Guidões, desde o 25 de Abril de 1974. Fomos sempre companheiros na luta por esse ideal de democracia, liberdade e igualdade para Portugal e para Guidões. Não esquecerei: o teu sorriso, a tua alegria, a tua causticidade, a tua amizade, as tuas preocupações, aquela forma carinhosa com que tratavas o Igor quando era pequeno e nos acompanhava nas viagens organizadas pela CDU de Guidões pelo país fora, a forma terna como pegavas a Lisete, ainda pequenina, ao colo, nas iniciativas e encontros da CDU, a forma jocosa dos teus diálogos com a Fernanda, as nossas longas conversas sobre a vida, o mundo, a natureza, a luta…
Nunca foste presidente de nada, chefe de qualquer coisa. Foste, simplesmente, um homem. Um homem na revolução. Um abraço fraterno de quem está e nos acompanha na estrada de Abril, um companheiro mais no combate comum.
Morreu o Lima Pereira. Aos poucos vão-me desaparecendo os amigos, os companheiros, os meus animais, a família…um dia serão outros que ficarão sem mim. O inexorável sentido da vida.

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