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Edição 431

A água. O devir. Os vizinhos. *

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A perceção de que os tempos mudam− e que com eles se mudam as vontades −, marcou mais uma atividade do jardim de infância. A saída planificada para visitarmos o(s) fontanário(s) que circunda(m) o nosso estabelecimento de ensino, tendo como guia interlocutor aqueloutro a quem o tempo aprimorou as vivências pelo percurso extenso já percorrido, revelou-se acertada. Assim, ouvir o senhor Alberto falar, narrar um dos capítulos da sua história, lembra o poeta Camões, “Do mal ficam as mágoas na lembrança, / E do bem (se algum houve) as saudades”.

— Foi a comissão de moradores, eleita nesta escola, numa assembleia realizada num sábado à noite. Juntávamo-nos − alguns desses amigos já faleceram − para falarmos dos problemas do lugar. Fixou-se construir fontanários, porque era o que as pessoas mais precisavam. Havia falta de água, as pessoas andavam com os cântaros a carregá-la lá de baixo. Falei então com o senhor engenheiro da Comissão Administrativa, filho da terra, casado na Trofa, também eleito pelo povo. Tinha os poderes. Falei com ele para ver se fazia um bocado de jeito para meter fontanários. Disse que não tinha dinheiro, mas que autorizava desde que “Vocês o façam com o vosso dinheiro”, adiantou. Falei, pois, falei com os restantes membros da comissão de moradores e combinou-se começar o trabalho ao domingo, no sítio onde estava o lavadouro e a serração, antes de construírem o prédio por cima. Olhe, havia por aí água, daqui e dali, escorria para um fundão. Havia muitas silvas e cada um arrogou-se de sachos e sacholas para, primeiro, limpar o terreno. Cavaram depois no interior da mina de água, enquanto outros, com as tábuas da serração, faziam taipais que sustentavam as paredes, para não caírem, senão ficávamos sem ar. Oh, depois de um grande marretão numa pedra, a água invadiu a mina. Tínhamos descoberto o veio de água! Tínhamos descido aí uns onze metros dentro do túnel.

A memória não se cansa de lembrar o que o animou no caminho. O longo percurso traz o cansaço à companhia, mas não desânimo à narração que prossegue.

— No outro fim de semana, parte deles já não vieram, fui eu e os meus filhos menores e uns poucos que iniciamos a construção dos fontanários. As pessoas dos lugares contribuíram com dinheiros e materiais − e algumas com trabalho. A construção dos fontanários aconteceu entre abril de 1975 e o dia 1 de maio de 1976. Nesse dia, abri a água para todos os fontanários. Havia um passador para controlar a distribuição. Entretanto, depois construíram outros, até que a água da companhia foi chegando. É obrigatório ter a baixada, mas continua a utilizar-se a água do fontanário.

O senhor Alberto caminha e para! Tira o lenço do bolso, limpa a testa, respira fundo, mais uma vez, procura as palavras e retoma…

— Um dia, a diretora da escola chamou-me para ver se eu ligava a água para lá. Eu disse-lhe que também tinha um pedido. Se ela fazia o favor de ceder o terreno da escola para alargar o caminho. A estrada andava um metro e noventa para dentro. Ficou assim combinada a troca de graças. Eram uns esteios e um arame a fazer de vedação. Passou-se um cano do fontanário rente ao muro até aquele casinhoto − ainda deve lá estar a tampa.

Entramos, procurou-se a tampa. Descobrimos que a nossa escola continua ainda agora, neste século XXI, em marcha, a ter água para rega proveniente de um fontanário construído em tempos revolucionários, em que movimentos comunitários de cidadãos empreenderam a seu favor.

Sente-se, por favor, fazemos gosto que entre para ver como estamos aqui instalados. Agradecemos a sua partilha, o tempo de dedicação, com uma canção:

“Quando eu era pequenina / Do tamanho do tostão / Ia ao poço tirar água / E ao fontanário de cântaro na mão / É que a água naquele tempo / Não chegava a casa pelo cano / Nem torneira em casa havia / Era mesmo muito estranho”. Esta é a canção da Tila, ela foi uma das crianças do tempo dos fontanários! Obrigado por este tempo; o momento lembra que “E, afora este mudar-se cada dia, Outra mudança faz de mor espanto, Que não se muda já como soía”.

 

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* tertúlia com o senhor Alberto, no Jardim de Infância da Feira Nova, sobre o fontanário da Rua da Escola, em S. Mamede do Coronado, Trofa

matilde neto | APVC – Associação para a Protecção do Vale do Coronado.

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