Crónicas e opinião
Vozes da psicologia A arte de gerir emoções: compreender,regular e crescer
O paradoxo do Natal: a época que ilumina… e também magoa
Há quem espere pelo Natal como quem espera por um reencontro. E há quem o tema como quem se aproxima de uma data que pressiona, relembra e expõe. A verdade é que esta época tem uma particularidade difícil de ignorar: pode aumentar a alegria e, ao mesmo tempo, pode intensificar a tristeza. Poucas alturas do ano são tão ambivalentes, tão cheias de luz e de sombra, como o mês de dezembro.
Parte desta dualidade explica-se pela forma como o nosso cérebro lida com as memórias. A psicologia mostra que o Natal funciona como um “marcador” temporal: os cheiros, as luzes nas ruas e as músicas repetidas despertam recordações de outros anos, outras pessoas e outras experiências. Sabemos hoje que a memória emocional não é neutra e ativa-se com força. A nostalgia pode ser doce, mas também pode ferir, sobretudo quando se misturam ausências, perdas ou relações que mudaram com o tempo.
A isto junta-se a carga das expectativas sociais, pois o Natal pede felicidade quase por decreto. É esperado que as famílias se reúnam e que os conflitos fiquem suspensos. Como se apenas a alegria fosse permitida. A pressão para “sentir o que é esperado” cria uma discrepância difícil de gerir para quem vive com ansiedade, solidão ou desgaste emocional. A psicologia chama-lhe incongruência afectiva: isto é, quando sentimos uma coisa, mas achamos que deveríamos sentir outra.
No campo das relações, o Natal também expõe a forma como nos ligamos. Para quem cresceu em ambientes seguros, esta época tende a reforçar a pertença, a união e o conforto. Mas quem experienciou vínculos inseguros, histórias familiares complexas ou um clima emocional tenso pode encontrar no Natal um palco de reativação de mágoas antigas. Os estudos sobre apego mostram que a proximidade forçada, mesmo que apenas simbólica, pode ser emocionalmente desorganizadora. Não é o jantar em si que pesa, mas sim tudo aquilo que ele representa.
Depois, há a solidão natalícia, um fenómeno frequentemente invisível. Não se trata apenas de estar fisicamente sozinho. Trata-se de sentir que não pertencemos ao que vemos à nossa volta. As fotografias de famílias reunidas, as casas iluminadas, as publicidades constantes nas televisões e os discursos de união parecem amplificar o contraste interno de quem não vive essa realidade. E, por vezes, basta uma perda recente ou uma distância geográfica para transformar dezembro num corredor escuro e silencioso.
Também a tecnologia, que nos acompanha sem pedir licença, acrescenta outra dimensão. As redes sociais tornam-se uma montra de “felicidade performativa”: árvores impecáveis, jantares perfeitos e famílias alinhadas. A comparação social é inevitável e quase sempre injusta. Olhamos para estes momentos editados e comparamos com a nossa vida real, imperfeita e tão humana. Sabemos isto há décadas, comparar alimenta a ansiedade e diminui o bem-estar.
Contudo, nem tudo é peso. Há, também, a alegria simples que esta época proporciona. O reencontro com pessoas queridas, o tempo de pausa, e a possibilidade de criar memórias novas, mais nossas e menos idealizadas. E é aqui que reside o paradoxo: o Natal pode ser um gatilho de tristeza e, ao mesmo tempo, um espaço de cura e proximidade. O que determina essa balança é, muitas vezes, a forma como regulamos as nossas emoções.
A regulação emocional não é apagar sentimentos, mas dar-lhes contexto. Permitir-nos sentir saudade sem acreditar que a saudade nos define. Reconhecer felicidade sem achar que ela tem de ser constante. Aceitar que o Natal não precisa de ser perfeito, apenas verdadeiro.
Estratégias simples ajudam: estabelecer limites, procurar conexões genuínas (mesmo que com poucas pessoas), criar tradições novas, reduzir o peso das obrigações e substituir o “tem de ser” pelo “isto faz sentido para mim?”.
Enquanto fenómeno cultural e emocional, o Natal não é apenas uma festa. É um espelho. Mostra o que temos, o que perdemos, o que desejamos e o que evitamos. Talvez por isso nos mexa tanto.
A ambivalência do Natal não é um erro: é a expressão mais humana da época. Entre a luz que nos aquece e a sombra que nos confronta, há espaço para tudo. E, se aceitarmos essa dualidade, talvez possamos viver esta altura do ano com mais liberdade, menos pressão e um pouco mais de verdade.
Artigo de Filipe Moreira


