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“Parque das Azenhas foi bom exemplo de como podemos integrar o património numa ação de reabilitação do rio”

O investigador Bruno Matos, da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, foi distinguido com o Prémio APRUPP 2025, atribuído pela Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Proteção do Património, com uma tese dedicada às Azenhas do rio Ave.

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O investigador Bruno Matos, da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, foi distinguido com o Prémio APRUPP 2025, atribuído pela Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Proteção do Património, com uma tese dedicada às Azenhas do rio Ave. Através do estudo da herança molinológica da região, o trofense defende que estas estruturas hidráulicas tradicionais, além de testemunhos históricos e identitários, são elementos fundamentais na preservação dos ecossistemas ribeirinhos e na valorização do território. “Não faz sentido continuar a ignorar este património”, afirma o autor, sublinhando que as azenhas “não são obstáculos, mas peças integrantes de um sistema ecológico, social e cultural”.

Acredita que o prémio poderá ajudar a impulsionar a preservação do património molinológico em Portugal?

É uma pergunta chave. A minha esperança é que este prémio sirva para dar visibilidade ao património molinológico em Portugal, mas também na Península Ibérica. É um património extraordinário, pouco conhecido, mas com uma função muito importante na preservação da identidade cultural ribeirinha. Não faz sentido! Gastamos milhões de euros em ações de “renaturalização dos rios” sem pensarmos na integração deste património cultural. Os rios foram, são e continuarão a ser um recurso das comunidades nas suas mais diversificadas dimensões – ambiental, cultural e social.

Azenha da Barca antes e depois da intervenção | Fonte: Bruno Matos

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O que o motivou a escolher as Azenhas do Ave como objeto de estudo para a sua tese de doutoramento?

O motivo primeiro que me levou a propor estudar as Azenhas do Ave no âmbito do mestrado e, posteriormente, no doutoramento foi uma memória de infância. Quando era criança a minha avó Alice Azevedo ia lavar a roupa para o areal da Azenha da Barca e levava-me com ela. O areal era uma praia fluvial onde tomávamos banho, grupos de mulheres lavavam a roupa, pescava-se, faziam cestaria em vime e recordo-me de ver as rodas da Azenha da Barca a funcionar. Estávamos no início da década de 1980, foi o virar de página entre o rio de uma comunidade para o rio transformado num canal de descargas de efluentes industriais e não só. No início da década de 1990 o rio Ave era considerado um dos rios mais poluídos da Europa. Havia quem afirmasse que o rio estava morto… e de facto a vida em torno do rio tinha acabado.

Porque é que considera importante preservar e valorizar o património molinológico desta região?

É importante preservar e valorizar este património porque faz parte da nossa cultura. É o que nos distingue enquanto comunidade. É parte da nossa identidade. O património arquitetónico é um elemento identitário que remete imediatamente para uma cidade, um país, isto é, um povo. Se virmos uma imagem da torre do Clérigos associamos imediatamente ao Porto, o Mosteiro dos Jerónimos a Lisboa, o Castelo a Guimarães, o Templo de Diana a Évora, etc… Nesse sentido, as azenhas são um património do Vale do Ave… é o património do rio, de uma vasta região… é a fundação da Indústria do Vale do Ave. Como podemos esquecer isto?

Por outro lado, as azenhas, os moinhos e todo o património hidráulico associado ao rio são fundamentais para a valorização da paisagem ribeirinha, quer do ponto de vista do ecossistema biológico, como da dimensão cultural e social. Por exemplo, recentemente convidaram-me para estar em Mértola num debate com a WWF-Portugal sobre um projeto de remoção de um conjunto de açudes na ribeira de Oeiras com o argumento da melhoria da “conectividade fluvial”. Foi muito interessante perceber como esta iniciativa levantou uma enorme contestação por parte do presidente da Câmara de Almodôvar e gerou dúvidas em todos os participantes, nomeadamente nas entidades de tutela ali presentes. Do nosso ponto de vista é interessante compreender como estas estruturas hidráulicas tradicionais têm ainda hoje um papel decisivo da preservação dos ecossistemas ribeirinhos, porque permitem a conservação das bacias de retenção… sem elas a vida desaparecia naquele local durante o verão. Além disso, representam um legado cultural que caracteriza a paisagem ribeirinha num determinado lugar… são construções com séculos de existência no curso do rio. A sua remoção irá provocar alterações imprevisíveis na gestão hidrográfica do rio: o aumento do impacto das cheias e reduções drásticas da água durante o período de secas… tudo isto trará consequências diretas na paisagem ribeirinha, na produção agrícola, mas também nos ecossistemas. Aliás, este património é um sistema territorial integrado no meio fluvial. Não é um obstáculo, pelo contrário é imprescindível para a preservação dos ecossistemas ribeirinhos.

Que principais descobertas ou conclusões destaca da sua investigação?

O património molinológico do rio Ave e nos demais rios portugueses é extraordinário a vários níveis. A sua dimensão cultural é profunda. Temos referências por toda a Península Ibérica de azenhas e moinhos hidráulicos que remontam ao período romano, islâmico e, no Ave, estão documentadas desde o início da monarquia. Arrisco-me a dizer que existem fortes indícios da presença de azenhas e moinhos hidráulicos na bacia do rio Ave, antes da monarquia, o que significa que estamos a falar de uma atividade proto-industrial com mais de 1000 anos. Esta longevidade histórica abre um livro de conhecimentos sobre diversas áreas do saber, que vai da geografia à hidráulica, engenharia, arquitetura, etnografia e tecnologia tradicional (construtiva e mecânica), entre muitas outras. Por outro lado, azenhas, moinhos e o património hidráulico tradicional associado (açudes ou caneiros, levadas, canais, minas, entre outros) têm uma função ambiental de extrema importância no atual contexto climático e de conservação da biodiversidade. Sabemos que contribui para o equilíbrio do ecossistema ribeirinho numa área de influência que extravasa o canal hidrográfico e estende-se para um vasto território alimentando veigas, agras, vales, charcos, poças, lameiros, etc. Desta forma, um açude e a sua bacia de retenção adquire uma área de influência tremenda (em muitos casos desconhecida) que pode nutrir um vasto território com vários quilómetros quadrados de extensão. Em suma, quando falamos do património molinológico associado a um curso ribeirinho estamos a falar de um património sistémico que é parte integrante do ecossistema e contribuiu claramente para o seu equilíbrio e preservação.

Azenha de Bairros – Fonte: Bruno Matos

Que papel tem o desenho arquitetónico na análise e interpretação do património molinológico?
O desenho arquitetónico tem um papel preponderante no processo de investigação em arquitetura. Recorremos ao desenho à mão “in situ”, ao desenho de levantamento assistido por computador e ao desenho técnico de projeto de intervenção. O desenho à mão “in situ” é fundamental para a compreensão arquitetónica, construtiva e tecnológica da azenha ou do moinho. Digamos que é uma leitura do edifício… enquanto desenhamos no local estamos a compreender a morfologia arquitetónica, os detalhes construtivos e, como temos conhecimento da tecnologia tradicional, estamos a imaginar o funcionamento de um engenho hidráulico desaparecido. Este passo é fundamental no processo de investigação em património molinológico. Após esta fase, debruçamo-nos sobre o desenho de levantamento assistido por computador. É desenho rigoroso, com escala, desenvolvido em gabinete, cruzado com a informação fornecida pela topografia. Nesta fase, temos dados sobre o existente, o estado de conservação, mas também sobre a implantação da azenha a diferentes escalas que vai desde as relações com o território, passando pela composição da paisagem, as dinâmicas hidrográficas, etc. Por outro lado, o desenho arquitetónico do edifício é o suporte para passarmos à próxima fase: o projeto de intervenção. É a última reflexão sobre o futuro do edifício, da estrutura ou da ruína existente. Entramos num processo normal de projeto com todos os requisitos normativos e legislativos que passam pelo estudo prévio, pelo projeto base e pelo projeto de execução. É o momento da coordenação de todas as especialidades inerentes ao processo: arquitetura, estabilidade, eletricidade, climatização, paisagismo, acessibilidades, musealização, etc. É o licenciamento e o planeamento da intervenção de modo a orientar o processo de obra.


Que desafios encontrou na investigação?

Foram diversos. Por um lado, a ausência de fontes documentais na área da arquitetura sobre o património molinológico do Ave (projetos, memórias descritivas, plantas, cortes e alçados) que permitissem a análise e caracterização das azenhas, açudes e demais construções associadas, o que obrigou a um exaustivo levantamento das construções ao longo do rio… Foi necessário desenhar cada uma das azenhas, numa leitura individualizada, de modo a criarmos as bases técnicas necessárias para a análise e caracterização do objeto de estudo. Tivemos que envolver os proprietários, as juntas de freguesia e as câmaras municipais para, por exemplo, limpar edifícios cobertos de vegetação há várias décadas. Este processo foi evolutivo. Vou dar um exemplo: o número de azenhas e moinhos identificados no curso do rio Ave nos municípios de Vila Nova de Famalicão, Santo Tirso, Trofa e Vila do Conde (cerca de 44 km de extensão): em 2014 foram 72 exemplares; em 2016 o número subiu para 82 exemplares, e em 2021 terminamos a identificar 91 exemplares. Este processo foi muito demorado… levou vários anos e a informação que íamos obtendo foi sendo atualizada em função de registos, documentos e fotografias antigas que permitiram comprovar a existência de determinadas azenhas atualmente desaparecidas, submersas pelas barragens…

Por outro lado, o desconhecimento sobre este património exigiu um permanente estudo, de modo a aprofundarmos questões técnicas de construção em meio fluvial, obter informações sobre os engenhos de moagem com o contacto permanente com a última geração de moleiros. Nesta matéria queria lembrar o senhor Américo Gonçalves, o senhor Joaquim Azevedo, o senhor Valdemar Portela, mas também os contactos que estabelecemos com carpinteiros, pedreiros, madeireiros, proprietários, barqueiras e muitos outros “profissionais do rio”.

Azenha de Sam antes e depois da intervenção | Fonte: Bruno Matos


Há abertura, por parte das entidades públicas, para valorizar este património?

Aos poucos, os municípios, as juntas de freguesia e as associações têm tomado medidas para a valorização deste património. Umas vezes promovem intervenções que contribuem para a valorização do património, apoiadas pela conceção do projeto de arquitetura; outras vezes atuam sem o apoio técnico devido e acabam por descaracterizar o património, mesmo quando a intenção pretende ser a melhor. O Município da Trofa tomou o procedimento correto… apesar dos avanços e recuos, acabou por haver vontade e determinação política para recuperar as Azenhas do Ave. Desta forma, os trofenses viram a sua identidade cultural cuidada e valorizada… imagino que isso seja um motivo de orgulho para os utilizadores do Parque das Azenhas. Agora, é necessário dar a devida continuidade, isto é, a utilidade aos edifícios contemplada no projeto de intervenção… a Azenha da Barca contempla um novo espaço expositivo e pedagógico sobre a história e as energias renováveis, onde deveria ser introduzida uma nova turbina hidráulica para o reaproveitamento da energia do rio, microprodução de eletricidade, com fins pedagógicos e ambientais; a ruína da Azenha de Sam está imaginada para ser um “spot” de fotografia da biodiversidade aberto para os fotógrafos de Natureza. É um espaço para observação da biodiversidade preparado para receber exposições temporárias durante o verão sobre a biodiversidade do rio Ave; e, a Azenha de Bairros contempla a reabilitação do edifício e a reconstrução dos engenhos de moagem para atividades educativas com as escolas da região. Sem uso, o edifício vai degradar-se rapidamente…

Projeto de intervenção da Azenha de Bairros | Fonte: Bruno Matos e CM Trofa

Mas, de um modo geral, ainda há muito para se fazer no nosso País. Não podemos criar um “Plano Nacional de Reabilitação de Rios e Ribeiras” e esquecer o património cultural associado aos rios. Temos um património hidráulico riquíssimo que remonta ao período romano, como comprovam os recentes estudos de arqueologia. As entidades da tutela não podem simplesmente ignorar… ou sacudir responsabilidades! Nesta matéria o Parque das Azenhas foi um bom exemplo de como podemos integrar o património numa ação de reabilitação do rio. Mas infelizmente este caso entra para a lista das exceções… quando, na nossa opinião, deveria ser uma regra. Chegamos ao ponto de considerar estas estruturas hidráulicas tradicionais “obstáculos obsoletos” que impedem a “conectividade fluvial” e com este argumento gastam-se milhares de euros na sua remoção e destruição. Este tema está na ordem do dia e faz parte das nossas prioridades de investigação.

Projeto de intervenção da Azenha da Barca – Fonte: Bruno Matos e CM Trofa


Que contributos concretos espera que a sua tese possa trazer para a salvaguarda e intervenção futura nas Azenhas do Ave?

Para além do contributo histórico ou arquitetónico sobre o conhecimento técnico destas estruturas, tem um capítulo dedicado ao futuro. Não é mais do que uma reflexão sobre novos usos. Aliás, o projeto de arquitetura e intervenção no património é isso mesmo: imaginar o futuro. Vou apenas levantar um pouco o “véu”: o futuro deste património passa, obviamente, pela componente cultural, isto é inegável, será sempre um património representativo de uma comunidade. É incontornável que o pão tradicional entre nesta dimensão cultural. Não é possível preservar as receitas de “pão tradicional” sem “farinha tradicional” moída em mó de pedra, lentamente, nos moinhos tradicionais.

Por outro lado, os moinhos hidráulicos são um marco da evolução tecnológica na história da humanidade. Representa a transição do uso da energia animal ou humana para o uso das energias renováveis ao serviço da evolução industrial. Assim permaneceu mais de 2000 anos até à revolução industrial e ao aparecimento da eletricidade.

E é esta condição natural do aproveitamento das energias renováveis que chegamos a um pertinente tema: a microprodução de eletricidade. Este é um desafio atual para a arquitetura, a engenharia e a indústria, evoluirmos nas tecnologias hidroelétricas de modo a incorporar turbinas de microprodução integradas neste património que possam valorizar estas estruturas… isto é, sistemas de produção para “baixa queda” que possam ser replicados para alcançarmos um modelo corporativo disseminado de produção hidroelétrica.

Por fim, estamos a aprofundar a investigação sobre o contributo que este património pode dar para a preservação dos ecossistemas ribeirinhos, da paisagem e do ambiente.

Complexo Molinológico de Pias Rio Sousa – Lousada | Fonte: CM Lousada

Tenciona desenvolver novos projetos relacionados com este tema?

Atualmente, estamos a desenvolver investigação sobre “biodiversidade associado ao património” no âmbito do recente protocolo entre a Associação BIOPOLIS – CIBIO (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos), com sede em Vairão na Quinta de Crasto, e o CEAU-FAUP (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto). Desta parceria nasceu um laboratório multidisciplinar, designado por BEDO “Biopolis Environnemental Design Office”, destinado a desenvolver projetos relacionados com biologia, património e paisagem onde, entre outras abordagens, os rios são tema central da investigação. Quando falamos em “reabilitar rios” é inevitável incluir o “património hidráulico tradicional”, integrado no ecossistema fluvial durante séculos. Com a integração secular destas estruturas antigas, aperfeiçoadas de geração em geração, temos muito a aprender sobre a gestão dos ecossistemas ribeirinhos e não só. Com a investigação integrada em biologia, património e paisagem, pretendemos desenvolver projetos em colaboração com órgãos de gestão, associações intermunicipais, municípios, entre outros, de modo a contribuir com conhecimento e projeto especializado, para melhorar as ações de recuperação de rios e ribeiras. O objetivo é preservar os ecossistemas ribeirinhos e simultaneamente reabilitar o património cultural e a paisagem ribeirinha com a identidade que a caracteriza.

Se tivermos como exemplo o rio Ave temos vários focos de interesse que podem ser objeto central desta investigação e merecem uma urgente atenção por parte dos municípios. São casos de enorme valor patrimonial, mas infelizmente estão em vias de desaparecer devido ao seu estado de conservação. Vou destacar apenas alguns exemplos: a Azenha Quinhentista da Azurara (Vila do Conde), o núcleo das Azenhas de Ponte d’Ave (Vila do Conde), a Azenha da Ponte do Mosteiro de São Bento (Santo Tirso), as Azenhas do Ave em Vila Nova de Famalicão e alguns exemplares em Guimarães. Um conjunto de ações promovidas pelos municípios poderia contribuir para destacar o Vale do Ave numa dimensão intermunicipal. O Corredor do Leça implementou essa estratégia e tem tido bons resultados no alinhamento político e nas ações ambientais implementadas. No caso do Ave, o património associado ao rio pode ser o elemento-chave para diferenciar uma estratégia de valorização territorial, porque concentra em si temas estruturais: ambiente, cultura, energia e sociedade. É com este objetivo que estamos a trabalhar noutras realidades, como por exemplo no rio Sousa, no rio Leça, ou mesmo na bacia do rio Guadiana.

Moinho no Rio Guadiana-Mértola | Fonte: Bruno Matos

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