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Opinião | A normalização do mal

“Usar nomes de crianças em idade pré-escolar para propaganda extremista e vídeos no Tiktok é levar o jogo para um nível de crueldade e de falta de escrúpulos que nunca pensei ver”.

João Mendes

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O problema de normalizar a extrema-direita, é que essa normalização levou a outras normalizações, cada vez mais anormais.

E já nem estou a falar no abandalhamento das instituições, no livre trânsito para o discurso racista e xenófobo, nas iniciativas cada vez mais vocais para retirar direitos sociais às mulheres, na invasão violenta de apresentações de livros, na defesa de uma polícia que atire a matar nos bairros, ou na conversa estapafúrdia sobre a pureza racial de uma nação que se misturou com povos de – literalmente – todo o mundo. Sempre tivemos disto por cá.

Mas usar nomes de crianças em idade pré-escolar para propaganda extremista e vídeos no Tiktok é levar o jogo para um nível de crueldade e de falta de escrúpulos que nunca pensei ver.

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É absolutamente repugnante.

Mas há uma boa lição a retirar daqui: com a extrema-direita, não são só as notícias que são falsas. Usar crianças para dividir e estimular o ódio é negar os princípios cristãos de que se dizem defensores. É reduzir ao ridículo pregões como “deixem as crianças em paz”. É criar condições para maior insegurança nas nossas escolas. É promover a exclusão com base num argumento tão inenarrável como o nome, num país de pessoas que, insisto, se misturaram com gente de todo o mundo. Num passado de que se dizem guardiões, apesar de conhecerem mal a sua história, como ficou claro no episódio recente sobre os muçulmanos que lutaram ao lado dos portugueses na Guerra Colonial. Porque, na verdade, tudo se resume a propaganda. E objectivo é apenas um: poder.

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É cada vez mais complicado perceber o que pretende o CH com a sua guerra cultural contra os imigrantes.

Por um lado, acusa-os de não se integrarem, pese embora se esforce mais para evitar essa integração do que para capacitar o SNS ou apresentar soluções para o problema da Habitação.

Por outro, critica as condições de acesso dos filhos dos imigrantes à Escola Pública, algo que, justamente, permite uma melhor integração dessas crianças, nomeadamente através do estudo da nossa língua e da sua exposição à cultura, normas e costumes portugueses.

Em que ficamos?

Querem imigrantes integrados ou enfiados num gueto que agudize os seus e os nossos problemas?

Ninguém sabe. O que não surpreende, vindo de um partido que ainda há poucos anos defendia a extinção do SNS e da Escola Pública, com um líder com obra publicada sobre a obrigação moral e histórica dos europeus de receber refugiados.

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Importa ainda referir, neste contexto, a importância do reagrupamento familiar, que o CH quer a todo o custo impedir. O mesmo reagrupamento familiar que permitiu que milhares de portugueses levassem as suas famílias para França. Os mesmos portugueses que para ali começaram a rumar na década de 60, para fugir à violência e crueldade de Salazar (percursor da corrupção moderna em Portugal, nunca é demais repeti-lo), para se ocupar dos trabalhos que os franceses não queriam fazer na construção, nas limpezas ou nos restaurantes, e para viver nos famosos Bidonville, bairros de lata muito semelhantes àqueles que existem hoje na periferia pobre de Lisboa e não só.

Se queremos imigrantes integrados, permitir o reagrupamento familiar é uma das melhores formas de o conseguir. Caso contrário, continuaremos a ter cá sobretudo homens, que deambulam pelas ruas no final do turno, porque não têm uma família para quem voltar nem espaço para estar, em simultâneo, com os 10 outros imigrantes com quem partilham casa.

Mas voltemos a França e imaginemos Marine Le Pen a fazer o mesmo que André Ventura e Rita Matias, mas com listas de crianças de origem portuguesa. Não faltam escolas em França onde os filhos de emigrantes portugueses estão em muito maior número que a escola com mais filhos de imigrantes do subcontinente indiano em Portugal. Ou Trump, em Newark, a fazer igual número. Ou na Suíça, onde a direita mais extrema chegou a distribuir propaganda em que portugueses eram retratados como parasitas ou ratos, não me recordo bem.

Assim já é mais chato, não é?

Pois é.

Mas achamos sempre que a nós não nos pode acontecer porque somos “brancos”, não é?

Deve ser.

Até ao dia em que deixa de ser.

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Começa com uma normalização.

E quando a primeira passa, caímos no erro de Chamberlain e, do nada, estamos a entregar os Sudetas aos nazis.

E se dúvidas restassem sobre o que nos pode esperar, nunca os europeus tiveram uma vista tão directa e privilegiada para o crepúsculo do novo regime que as forças de extrema-direita têm para o Ocidente.

Basta olhar para o outro lado do Atlântico e assistir ao colapso em directo da democracia americana. A institucionalização da oligarquia, a polícia política disfarçada de serviço de imigração, adversários políticos ameaçados e detidos, a supressão da separação de poderes ou os cortes pesados nos serviços do estado, que apesar de tudo não só não afectam, como até beneficiam grandes contratos, como aquele que garante muitos milhões anuais para a SpaceX, de Elon Musk (que já recebia de Biden, note-se). Para não falar no caso da lista de Epstein, um dos maiores escândalos de pedofilia da história, que a administração Trump prometeu revelar e que agora garante não existir. Querem ver que Trump, grande amigo de Epstein e frequentador da sua ilha dos horrores, estava na lista? Tudo parece indicar que sim. E da extrema-direita europeia nem um pio. Será que consideram Trump um pedófilo do bem?

E, claro, em cima de tudo isto, uma reforma fiscal que beneficia, sem surpresas, os ultraricos, em prejuízo de todos os outros, incluindo os ricos.

Às vezes acho piada quando vejo malta rica – nada contra, espero ser um dia – a criticar os apelos da esquerda americana para taxar os ultraricos, como se os 10 ou 20 milhões que têm no banco os qualificassem para fazer parte do 1%. Mas ainda mais genial é conseguir convencer 77 milhões de americanos, a maior parte dos quais dependente de algum serviço público, muitos deles pobres, que cortar no estado e dar borlas fiscais a pessoas com vários milhares de milhões de dólares é feito no seu melhor interesse.

Palavras para quê?

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