Edição 609
Nostalgia do mérito
Vivemos numa época em que muito facilmente atingimos a fama. Aquilo que, em tempos idos, era um feito de pessoas que muito trabalhavam para atingir o topo, entendendo por topo aquele momento em que o público, de uma maneira geral, conhece e reconhece o nosso trabalho, está, nos tempos atuais, à distância de um vídeo polémico, uma declaração bombástica, ou uma série de figuras tristes passadas em televisão nacional.
É a época dos reality-shows, dos vídeos do youtube, ou dos programas da manhã. Se, há uns bons anos, víamos com orgulho alguém chegar ao topo pelo seu trabalho, hoje somos confrontados com pseudo-artistas que se regem pela máxima: bem ou mal, o que interessa é que as pessoas falem.
Onde é que erramos para que as nossas prioridades mudassem tanto? Qual foi, exatamente, a asneira que cometemos para que hoje o que interessa era o que, dantes, encaminhado para o lixo?
Opinamos sem conhecer, partilhamos sem ler, e juntamo-nos ao coro, ao barulho, ao ruído que assola, principalmente, as redes sociais, sem olharmos primeiro para nós e para a nossa vida e pensarmos se estamos a cair num erro crasso. Penso nisto quando me lembro da polémica em relação a um livro do escritor Valter Hugo Mãe, que foi retirado da lista do PNL do 3º ciclo por revolta de um conjunto de pais de uma escola do país, por conter «conteúdo sexual que consideram “violento” e “inapropriado” para alunos do 3º ciclo.» Coitados dos meninos do 3º ciclo, que apenas com a obra do escritor português tiveram o seu primeiro contacto com linguagem obscena e conteúdos sexuais inapropriados. No entanto, estou descansado. Tenho a certeza que estes pais também proíbem os filhos de ver os conteúdos sexuais dos programas de televisão, tenho a certeza que estes pais não dizem um palavrão junto dos filhos, pequenos, do 3º ciclo e, sobretudo, tenho a certeza que estes pais controlam tudo o que os filhos veem na Internet, quer seja no computador ou no smartphone. Nem me refiro a que, em breve, os alunos irão conhecer Gil Vicente ou Eça de Queirós. Refiro-me, sobretudo, à hipocrisia desta atitude.
Choveram críticas ao escritor, à sua pessoa, provavelmente de indivíduos que nunca leram sequer uma obra do autor. Ou, se calhar, que nunca um livro leram na vida. Mas que consomem, violentamente, os conteúdos degradantes que a televisão portuguesa nos apresenta e que falam disso nos cafés e nas redes sociais. Porque é obsceno um livro que choca, mas não é obsceno que indivíduos estejam fechados numa casa a ganhar dinheiro para criarem confusão, ou que personalidades ganhem tempo de antena na comunicação social pelas figuras tristes e vazias de exemplo que deixam ao público.
Para mim, é a nostalgia do mérito. Muito dificilmente, hoje, alguém chega ao topo por mérito. O topo em que o público reconhece e conhece o nosso trabalho. Se não for chocante, polémico ou bombástico, não tem atenção. Mas se gerar uma quase revolta social, o público junta-se para criticar em coro, mesmo que não saiba do que está a falar. O elogio perdeu-se pelo caminho mas, pelo menos, tem a companhia do verdadeiro mérito.
Tenhamos zelo, coerência e racionalidade na nossa opinião. E lembremo-nos de que os jovens vão, um dia, viver num mundo que demonstra ser pior que uma passagem de um livro ou uma palavra menos própria. E que a melhor forma de os prepararmos para essa realidade é educa-los para que, pelo menos, não sejam como nós.
Literariamente, estamos conversados.
Literária Mente
Nostalgia do mérito
Vivemos numa época em que muito facilmente atingimos a fama. Aquilo que, em tempos idos, era um feito de pessoas que muito trabalhavam para atingir o topo, entendendo por topo aquele momento em que o público, de uma maneira geral, conhece e reconhece o nosso trabalho, está, nos tempos atuais, à distância de um vídeo polémico, uma declaração bombástica, ou uma série de figuras tristes passadas em televisão nacional.
É a época dos reality-shows, dos vídeos do youtube, ou dos programas da manhã. Se, há uns bons anos, víamos com orgulho alguém chegar ao topo pelo seu trabalho, hoje somos confrontados com pseudo-artistas que se regem pela máxima: bem ou mal, o que interessa é que as pessoas falem.
Onde é que erramos para que as nossas prioridades mudassem tanto? Qual foi, exatamente, a asneira que cometemos para que hoje o que interessa era o que, dantes, encaminhado para o lixo?
Opinamos sem conhecer, partilhamos sem ler, e juntamo-nos ao coro, ao barulho, ao ruído que assola, principalmente, as redes sociais, sem olharmos primeiro para nós e para a nossa vida e pensarmos se estamos a cair num erro crasso. Penso nisto quando me lembro da polémica em relação a um livro do escritor Valter Hugo Mãe, que foi retirado da lista do PNL do 3º ciclo por revolta de um conjunto de pais de uma escola do país, por conter «conteúdo sexual que consideram “violento” e “inapropriado” para alunos do 3º ciclo.» Coitados dos meninos do 3º ciclo, que apenas com a obra do escritor português tiveram o seu primeiro contacto com linguagem obscena e conteúdos sexuais inapropriados. No entanto, estou descansado. Tenho a certeza que estes pais também proíbem os filhos de ver os conteúdos sexuais dos programas de televisão, tenho a certeza que estes pais não dizem um palavrão junto dos filhos, pequenos, do 3º ciclo e, sobretudo, tenho a certeza que estes pais controlam tudo o que os filhos veem na Internet, quer seja no computador ou no smartphone. Nem me refiro a que, em breve, os alunos irão conhecer Gil Vicente ou Eça de Queirós. Refiro-me, sobretudo, à hipocrisia desta atitude.
Choveram críticas ao escritor, à sua pessoa, provavelmente de indivíduos que nunca leram sequer uma obra do autor. Ou, se calhar, que nunca um livro leram na vida. Mas que consomem, violentamente, os conteúdos degradantes que a televisão portuguesa nos apresenta e que falam disso nos cafés e nas redes sociais. Porque é obsceno um livro que choca, mas não é obsceno que indivíduos estejam fechados numa casa a ganhar dinheiro para criarem confusão, ou que personalidades ganhem tempo de antena na comunicação social pelas figuras tristes e vazias de exemplo que deixam ao público.
Para mim, é a nostalgia do mérito. Muito dificilmente, hoje, alguém chega ao topo por mérito. O topo em que o público reconhece e conhece o nosso trabalho. Se não for chocante, polémico ou bombástico, não tem atenção. Mas se gerar uma quase revolta social, o público junta-se para criticar em coro, mesmo que não saiba do que está a falar. O elogio perdeu-se pelo caminho mas, pelo menos, tem a companhia do verdadeiro mérito.
Tenhamos zelo, coerência e racionalidade na nossa opinião. E lembremo-nos de que os jovens vão, um dia, viver num mundo que demonstra ser pior que uma passagem de um livro ou uma palavra menos própria. E que a melhor forma de os prepararmos para essa realidade é educa-los para que, pelo menos, não sejam como nós.
Literariamente, estamos conversados.
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