Crónicas e opinião
Escrita com Norte: Um filho na barriga, um estranho no pensamento
A noite carregada de cinzento e a chuva persistente faziam o rio Trofa, que atravessa Bougado, rasgar as margens, quando num barraco, bem próximo, rebentam as águas a Dália.

A noite carregada de cinzento e a chuva persistente faziam o rio Trofa, que atravessa Bougado, rasgar as margens, quando num barraco, bem próximo, rebentam as águas a Dália. Sem nenhum sinal celeste, nem um sequer relâmpago, nesta noite de tempestade, a anunciar um nascimento especial, no momento do parto, a mãe berra, bem alto, o nome do seu ídolo de sempre: – “ALAAAAAAIN DELONNNNNN!”. O berro termina quando sai o último pedacinho de bebé do ventre. Em choro, é colocado num berço de palha por Rubi, que apanha o recém-nascido pelo cachaço. Durante este momento de ternura entre o cão e o novo membro da família, Augusto, possuído pelos ciúmes, sentimento superior à paternidade, berra com a mulher:
– Sua tola, até no nascimento do nosso filho tu pensas nesse gajo?! – Grita Augusto, enquanto rasga a camisa.
– Boa! Não te compro outra! – Diz Dália.
– O quê?! – Augusto olha para si mesmo, e continua – O que é que eu fiz?! A minha melhor camisa! – E voltando a fixar a mulher, muda o tom de voz para berros: – Visto a minha melhor camisa para o pato e…
– Para o parto, para o parto. – Corrige Dália, num tom de paciência.
– Para o parto e tu dizes o nome desse Alain Delon, sua vadia!
– O quê?! Seu pescador de meia tigela… tu deves ter escamas nas orelhas. O que eu disse foi: “Pelo meu querido filhinho, suporto qualquer dor! Sou uma leoa.” – Esclarece Dália, num tom exaltado.
– Aaahh, leoa! Tu és uma leoa! Enganaste-me bem, para me apanhares no altar… eu era o teu amor, eras do FCP, sabias fazer bainhas…e agora és leoa? Só falta jogar um Alain Delon no Sporting! Sua minhoca! Enganaste-me bem, enganaste!
– Tu é que me enganaste quando te conheci! Dizeres-me que praticavas pesca desportiva no teu barco, e eu a pensar que eras rico, e tu ias era à apanha da sardinha…seu falso!
– Aaahh, falso eu?! Iludida! Tu ouvias o que querias! Eu disse-te, e várias vezes, que praticava pesca da tainha, na traineira do meu primo Angelino!
Rubi, o cão da família, achando que aquele ambiente não era propício para uma criança, apesar de ser um pouco mais colorido do que lá fora, decide intervir e pôr um ponto final na discussão:
– Papá, mamã! – Ladrou Rubi!
Dália e Augusto, pasmados, olham para trás em direção ao berço de madeira onde está deitado o bebé.
– Oi… isto é milagre! O nosso menino falou! – Exclama Dália.
E os dois aproximam-se do berço:
– Mas ele está a dormir! – Diz Augusto.
– Mas falou, não ouviste? – Pergunta Dália.
– Ouvi, ouvi… temos que lhe dar já um nome. Se calhar amanhã vai-nos perguntar como se chama! Tens alguma ideia? – Pergunta Augusto.
A vontade de Dália era de pôr o nome do seu ídolo de sempre, Alain Delon, por quem se apaixonou muito nova, quando no quiosque onde costumava comprar o almanaque trimestral de ponto-cruz, viu-o do lado de lá, pendurado na capa de uma revista. Foi amor à primeira vista! Mas isso iria trazer discussões diárias ao seio da família devido aos ciúmes de Augusto.
– Não, não tenho nenhuma ideia! E tu?
– Sei lá, deixa-me pensar…humm… já sei. Podíamos pôr o nome do meu primo Angelino! – Propõe Augusto.
– Estás louco. Para me lembrar sempre desse chato, não?! – Retorquiu Dália.
– Então podia-se chamar Emília! – Diz Augusto.
De repente, furiosa, Dália agarra a pilinha do bebé e diz:
– Estás a ver esta ferramenta? Isto é macho! – Depois aponta para Augusto – Tu, burro!
– É que eu sempre gostei do nome Emília! Podíamos chamá-lo de João Emília! – Defende-se Augusto.
Dália, por momentos, entra no domínio do delírio e imagina-se feliz com Alain Delon e o filho de ambos! De volta ao mundo real, para ela não muito melhor do que o tempo lá fora, não por não gostar do marido, mas por não ter o seu amor próximo, responde-lhe:
– Esquece, já sei como ele se vai chamar. O nosso menino vai-se chamar Adélio Dani!
Dália acha este nome parecido com Alain Delon. Desta forma evita os ciúmes de Augusto e sente o seu ídolo mais presente.
Nos dias seguintes, apesar das insistências de Augusto para fazer conversa com o filho recém-nascido, Adélio Dani apenas chorava, dormia e mamava, enquanto sua mãe sonhava com o seu amor, capa de revista!